Mulheres gestantes: nove meses de injustiça, fadiga e humilhação

A incongruência entre as leis que protegem as mulheres gestantes e a realidade que estas vivem no seu quotidiano, fazem da gravidez um novo ciclo de luta pelos direitos da mulher. Foliana e Maria, são um exemplo desta batalha.“…Pus a minha saúde em risco. Até tive problemas com a minha família, mas não podia cruzar os braços, tinha que lutar e buscar o pouco que ganhava para ajudar o meu marido.”

Dar à luz é um processo biológico natural que só a mulher tem a oportunidade de vivenciar. Durante nove meses carrega consigo uma nova vida, um momento em que a alegria e o privilégio de poder gerar um novo ser dilui-se com desrespeito e a consciência da sua vulnerabilidade. Embora seja uma experiência única, nem sempre decorre em condições adequadas.
Foliana Mateus Chilenge, de 33 anos de idade é mãe de dois rapazes e espera o seu terceiro filho. Cozinheira de formação, mas há oito anos exerce a profissão de empregada doméstica, um trabalha que classifica como complicado e por isso decidiu para até que o seu filho nasça, pois as recordações que tem da sua segunda gestação não são das melhores.

 

“Eu sabia que a minha patroa não queria mais ninguém a trabalhar na casa dela e eu tinha muito medo de perder o emprego, então preferi ir trabalhar mesmo depois de ter tido um parto complicado, que foi cesariana. Pus a minha saúde em risco. Até tive problemas com a minha família, mas não podia cruzar os braços, tinha que lutar e buscar o pouco que ganhava para ajudar o meu marido.”
Em Moçambique casos como o de Foliana encontram abrigo na lei do Trabalho no ponto “Maternidade e trabalho” (artigo 12) -Licença de maternidade, que estabelece que mulheres trabalhadoras têm direito a uma licença de maternidade de 60 dias, com salário integral, pago pelo sistema de segurança social. Esta é aplicada igualmente aos nados vivos ou mortos. Caso o quadro clínico da mãe ou da criança a impeçam de trabalhar, ela tem direito a uma licença antes do nascimento por um período necessário, obedecendo a prescrição médica. A gestante tem ainda, segundo a Lei do Trabalho direito à garantia salaria, o que significa que deverá continuar a receber o seu ordenado normalmente.

Garantia salarial (Artigo 27 do Decreto 53/2007- Sobre o sistema de segurança social obrigatório para trabalhadores)

Durante o prazo da licença de maternidade (60 dias), as mulheres têm direito a prestações pecuniárias do sistema de segurança social. Embora a lei moçambicana proteja a gestante no que diz respeito a licença à maternidade e a garantia de salário durante este período, ainda se vivem muitos casos de irregularidade, como o de Foliana Mateus. Muitas vezes esses casos são derivados do desconhecimento das mulheres sobre as leis e normas que protegem o cidadão, um indicador de que o trabalho de divulgação destas mesmas leis necessita de um melhoramento.

Não só a Lei “viola” a mulher gestante, mas também a própria sociedade

“…minha chefe já teve a coragem de dizer-me que está farta de trabalhar com mulheres e que dali por diante queria trabalhar apenas com homens…”
Sentada num banco na ala de maternidade do Hospital Geral de Chamanculo junto a tantas outras, encontramos uma jovem mulher de 23 anos. Ela mostrou-se aberta a partilhar as suas experiências no que diz respeito ao universo da gestação, mas antes que a entrevista tivesse inicio pede que por questões de segurança o seu nome seja mantido em sigilo. Chamemo-la Maria Antonieta.
Maria já saboreou a experiência de ser mãe, tem uma filha de Três anos e encontra-se agora no quarto mês de gestação do seu segundo filho. Mensalmente vai a consultas inclusas no pacote pré-natal, para monitorar a saúde de seu filho.

Sobre o atendimento no hospital ela não tem nenhuma queixa, embora, segundo ela, o tratamento hospitalar a nível geral seja mau, contrariamente à maternidade, que é uma das que melhor funciona. A inquietação de Maria provem de outros fóruns, a questão profissional é uma delas.
Ela é professora na Escola Primaria Completa de Bokisso, em Maputo. Embora conheça os seus direitos enquanto gestante, ainda depara-se com situações a que considera pouco dignas para qualquer profissional. A nossa entrevistada segreda-nos que esta é a primeira vez em que tem que trabalhar estando grávida, e diz constituir surpresa para ela o comportamento de seus superiores com relação a sua gestação.

“Não há respeito. Muitas vezes tive que ‘engolir sapos’ para não perder o meu emprego, porque se quero ajudar o meu marido devo ser paciente. Nos dias em que tenho consultas submeto cartas a solicitar dispensa, mas o meu director costuma indeferir, alega que sempre submeto em cima da hora, mas isso não é verdade, é só uma desculpa para não permitir que eu saia. Hoje (dia da entrevista) por exemplo, estou cá no hospital, mas saí sem informar e posso ser descontada, porque até já sofri essa ameaça de desconto.”

Maria faz menção a episódios ainda mais dramáticos:
“Já tive situações que me deixaram mais indignada. Pensei que nós, mulheres, fôssemos apoiantes umas das outras, pois partilhamos das mesmas experiencias e dores, mas agora acho que nada mais me surpreende. Tanho uma chefe que já teve a coragem de dizer-me que está farta de trabalhar com mulheres e que dali por diante queria trabalhar apenas com homens, pois as mulheres davam-lhe muito trabalho, por estarem toda a hora grávidas. Por incrível que pareça, ela é mãe de cinco filhos.”

Mesmo Conhecendo os seus direitos, Maria diz no saber como agir perante estas situações. Por várias vezes pensou em denunciar os chefes mas, porque todos, família e colegas de trabalho temem pela sua segurança e emprego, a desincentivam. Maria decidiu manter-se em silêncio embora receie que as coisas piorem após o nascimento do filho.
“Não sei como vou lidar com a situação. O salário é pouco para pagar uma babá e também sei que devo dar leite do peito pelo menos durante os primeiros seis meses.”
No capítulo de amamentação, a Lei do trabalho, no seu artigo 11.1, estabelece que durante um ano, a mulher deve beneficiar do enfermagem breaks, uma pausa diária com a duração de uma hora, que pode ser gozada em um intervalo, tirado de uma única vez ou repartido em dois períodos ao dia. A enfermagem breaks é permitida à mulher trabalhadora de modo que possa amamentar seus filhos. Estas pausas devem ser totalmente pagas e são consideradas como tempo de trabalho.

Maria serve-se do seu próprio caso para concluir que “este instrumento [Lei do Trabalho] é inoperante.” Ela vive na cidade de Maputo e precisa de duas horas para chegar ao local de trabalho, distância percorrida com recurso a dois ‘chapas’ e um pequeno troço concluído a pé. Futuramente, ficará assim descartada a possibilidade de esta tirar a hora prevista para regressar à casa amamentar o seu bebé.

As viagens diárias da nossa entrevistada tornam-se ainda mais cansativas quando, dentro do autocarro não consegue um assento, tendo que fazer as viagens de pé. As duas mães que trazemos nesta reportagem comungam desta mesma realidade: viagens longas e nada cómodas.

A equipe do CEC escolheu um dia para acompanhar o percurso da primeira entrevistada, Foliana Mateus, que saía de Nkobe em direcção à Baixa da cidade (Anjo Voador). Tomamos um autocarro da Empresa Municipal de Transportes Públicos de Maputo (EMTPM). Eram 11 horas. O autocarro estava lotado, não havia um só assento livre. Havia passageiros de todas as idades. Foliana foi a primeira a subir, e nós seguimo-la. É regra, naqueles autocarros, entrar-se pela porta traseira e, uma vez dentro do carro o passageiro deve, a todo o custo, tentar afastar-se, pelo corredor, em direcção à porta frontal, para dar espaço aos passageiros que vão entrando ao longo da viagem. A ser feita essa leitura, pode-se calcular que durante as cerca de uma hora e meia de viagem, Foliana tenha sido vista pela maioria dos passageiros que passaram pelo autocarro, no entanto, ninguém se dignou a ceder o assento a esta senhora gestante, já com seis meses de gravidez. Ficou evidente a quebra das regras de civismo social que recomendam que se ceda assento e vaga (nas filas) a mulheres grávidas, idosos, deficientes físicos e pessoas que carreguem bebés ao colo.

Falta foco do Governo na promoção e execução dos ODM
O estado de gravidez não é sinónimo de doença, mas é motivo para se estar alerta pois é um estado de vulnerabilidade para a contracção de muitas doenças, com especial atenção para as de fundo infeccioso como a malária.
Segundo refere Olga Sigauque, do Departamento de Saúde materno-infantil do Ministério da Saúde (MISAU), o Estado tem vindo a trabalhar com vista a melhorar a situação da mulher e criança no país, buscando oferecer melhor atendimento hospitalar, plano que está relacionado ao alcance dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). O actual pacote de atendimento à mulher (pré-natal) inclui o tratamento de uma grande quantidade de doenças, sendo este composto por uma forte bateria de exames que, segundo Sigauque, nos últimos anos sofreu readaptações com a introdução do exame de HIV/SIDA que passou a ser obrigatório para as gestantes.
A saúde da mulher gestante e da criança mereceu também uma especial atenção por parte dos governos de muitos países, ao ser colocada como um dos pontos ODM anteriores, que determinavam que até 2015: se reduzisse em dois terços a taxa de mortalidade de menores de cinco anos (ponto 4); se reduzisse em três quartos a taxa de mortalidade materna (ponto 5); se combatesse o HIV/SIDA, a malária e outras doenças (ponto 6).
Relativamente a estes ODM, a leitura que o médico representante da UNICEF, Frederico Brito faz é de que há muito por ser feito no que diz respeito a situação da gestante no país. Frederico aponta que dos ODM relacionados a saúde materno-infantil, apenas um foi alcançado que é o ponto 4, uma vez que, as estatísticas apontam que anteriormente, 200 entre 1000 nascimentos não conseguiam atingir os cinco anos de vida, e actualmente houve uma redução significativa, de 200 para 97.
Como principais causas das falhas no cumprimento dos restantes ODM nessa matéria, Frederico Brito critica a falta de foco do Governo na promoção e execução dos pontos traçados pois, ele entende que “as políticas existem, falta apenas investir com seriedade e procurar perceber quais são as áreas vitais na sociedade.”

O representante da UNICEF traz como exemplo a seguinte situação: “se o centro de saúde lá da vila for melhorado, mas a estrada que leva os pacientes até lá continuar esburacada é óbvio que não haverá nenhum avanço. Portanto, para que haja melhorias efectivas na saúde é necessário que seja feito um trabalho intenso em todas as áreas vitais e passe também pela sensibilização da população, fazendo-lhe perceber as coisas e a importância dessas mesmas coisas para si.”
Uma vez esgotado o prazo dos anteriores ODM e não cumprida boa parte das metas, foram lançados novos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, cujo prazo vai até 2030. Segundo analisa o médico representante da UNICEF, estes novos objectivos carregam um núcleo muito distinto dos anteriores, pois estes não estão focalizados nas consequências e sim na prevenção, preocupando-se não sobre como reduzir os danos (como por exemplo é exposto no ponto 4 do ODM), mas sim como se pode evitar que se chegue a fase do problema. No entanto, o médico recorda que é necessário que os governos ponham com maior urgência todas estas políticas em funcionamento, de modo a evitar perdas de vidas humanas e outros danos para as populações, pois o estado de gravidez é uma fase muito delicada e que quando não respeitada pode ter consequências graves.

Comentário (1)

  • João Lucas| 18 Junho, 2018

    Olá ! Este post não podia ser escrito de melhor maneira !.

    Obrigado por partilhar!

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